Pobre pelo espírito” é aquele que se
libertou interiormente de todo o apego a qualquer objeto externo.
“Puro de coração” é aquele que se
libertou, não só dos objetos externos, mas, também, do sujeito interno, isto é,
daquilo que ele idolatrava como sendo o seu sujeito, o seu eu, embora fosse
apenas o seu pseudo-eu, o seu pequeno ego físico-mental.
Quem se libertou dos bens materiais
fora dele possui o “reino dos céus”, porque o seu reino já não é deste mundo;
rejeitou a oferta do ego luciférico “eu te darei todos os reinos do mundo e sua
glória” - mas quem se libertou, também, do maior pseudobem dentro dele, o seu
idolatrado ego personal, esse tem a certeza de “ver a Deus”, verá o verdadeiro
Deus, porque olha para além do seu falso eu.
De maneira que ser puro de coração é
ainda mais glorioso do que ser pobre pelo espírito; ser interiormente livre da
obsessão do ego vivo é mais do que ser livre da escravidão da matéria morta.
Aliás, ninguém pode ser realmente livre da matéria morta dos bens externos sem
ser livre da ilusão do ego vivo, porque tudo que eu chamo “meu” é apenas um
reflexo e uma conseqüência do meu falso “eu”, o ego físico-mental; se o meu
falso eu se tivesse integrado no verdadeiro Eu, que é o Universo em mim, não
teria eu necessidade alguma de me apegar àquilo que chamo “meu”, os bens
individuais. Enquanto o pequeno eu não tiver em si suficiente segurança
interna, necessita de buscar seguranças em fatores externos; mas a segurança
interna torna supérflua as seguranças externas; o pequeno eu fez tantos
‘seguros de vida” porque não possui segurança. Age sob o impulso da lei da
compensação.
A
definitiva integração do pequeno ego físico-mental no grande Eu
racional-espiritual é que é pureza de coração, que garante uma visão clara de
Deus. Ninguém pode ver claramente o Deus transcendente do universo de fora
antes de ver nitidamente o Deus imanente do universo de dentro.
Nas
letras sacras — como também nos escritos de Mahatma Gandhi — “impureza” quer
dizer egoísmo, e “pureza” significa o oposto, que é o amor universal a
solidariedade cósmica. Os demônios, no Evangelho, são constantemente chamados
‘espíritos impuros”, porque são egoístas, tanto assim que procuram apoderar-se
de corpos humanos, desequilibrando-os física e mentalmente, só para gozarem de
certo conforto pessoal que essa obsessão lhes dá. Esse egoísmo é que é chamado
“impureza”.
Gandhi,
quando não conseguia fazer prevalecer os seus ideais entre os patrícios
renitentes, recorria a um período de “self-purification”, mediante a oração e o
jejum, porque atribuia essa falta de força espiritual ao seu egoísmo; para ele,
egoísmo era impureza e fraqueza, ao passo que amor era pureza e força.
Certa
teologia cristã, quando fala em impureza, entende apenas o abuso dos prazeres
sexuais. Estes, certamente, também fazem parte do egoísmo humano, são o egoísmo
da carne; mas não são a única nem mesmo a principal zona do egoísmo ou da
impureza; todo e qualquer egoísmo é impureza. Os demônios de que o Evangelho
nos fala, eram “espíritos impuros”, embora não estivessem sujeitos à impureza
sexual. Eram impuros por egoísmo.
O egoísta
impuro não pode ver a Deus, que é amor puríssimo. O egoísmo, portanto, a
egolatria, equivale a uma cegueira mental. Entre o Deus-amor e o homem egoísta
se ergue, por assim dizer uma muralha opaca que intercepta a luz divina.
Enquanto o homem não ultrapassar as estreitas barreiras do seu ego personal,
está com os olhos vendados, separados de Deus por uma camada impermeável à luz,
que é a impureza do coração. Por mais que um ególatra ouça falar em Deus, nada
compreende, porque compreender supõe ser. Ninguém pode compreender senão
aquilo que ele vive ou é no seu íntimo ser. Entender é um ato mental, mas
compreender é uma atitude vital; entender mentalmente é uma função parcial,
unilateral do nosso ego humano — compreender é uma vivência total, unilateral,
do nosso Eu divino. Quem não é divino não pode saber o que é Deus. O egoísta é
antidivino, e por isso não pode compreender o que é divino, não pode ver a
Deus”, antes de adquirir “pureza de coração”.
“Ver a Deus” “ver
o reino de Deus”, são expressões típicas queJesus usa para designar a
experiência direta da Realidade eterna, o contato íntimo com ela. Outros crêem
em Deus — mas só o puro de coração vê a Deus. O simples crer, embora necessário
como estágio preliminar, não é suficiente para a definitiva redenção do homem,
que consiste na vidência ou visão de Deus. “Bem-aventurados os puros de
coração, porque eles verão a Deus”...
Se é
difícil a “pobreza pelo espírito”, muito mais difícil é a “pureza do coração”.
O desapego dos bens externos é o abandono de algo que não fez, nem jamais
poderá fazer parte integrante do homem algo que nunca foi nem pode ser
realmente “seu” - ao passo que o ego personal faz parte integrante do homem, é
“seu”, embora não seja ele mesmo; e por isso a renúncia à sua personalidade
físico-mental em prol da sua individualidade espiritual é, incomparavelmente,
mais difícil do que a renúncia à cobiça dos bens externos. Parece ser uma morte
para o homem que ainda não descobriu o seu eterno Eu. Mas essa morte é
indispensável para a ressurreição. A coragem de arriscar ou não arriscar esse
salto mortal do ego humano para o Eu divino é que divide a humanidade em dois
campos: em profanos e iniciados, nos de fora e nos de dentro, em cegos e
videntes, em inexperientes e experientes, em insipientes e em sapientes. É
necessário que o homem sofra tudo isso para, assim, entrar em sua glória...
O
despertar dessa nova vidência, que existe, dormente, em cada um de nós, requer
exercício intenso, assíduo e prolongado, porque o homem tem de superar
barreiras já estabilizadas há séculos e milênios. Se essa vidência não fizesse
parte integrante da natureza humana, nenhuma esperança haveria de podermos
despertá-la, porque não se pode despertar o que não existe. Mas nós sabemos que
ela existe. Em alguns essa vidência adquiriu intensidade e nitidez muito maior
do que em nós, e pelo menos num homem, chegou ela, a ser perfeitamente desenvolvida.
Ora, o que aconteceu uma vez pode acontecer mais vezes.
Sem
exercícios sistemáticos e bem orientados é impossível termos esse contato consciente
com o grande mundo desconhecido.
Os
exercícios, porém, não consistem apenas em determinadas técnicas
intermitentemente praticadas, como as escolas iniciáticas prescrevem; muito
mais importante que essas práticas periódicas é a vivência contínua, o viver de
cada dia inteiramente pautado por essa realidade.
Esse
exercício diário e vital consiste, principalmente, em uma permanente atitude
interna de querer servir, servir espontânea e gratuitamente a todos. Esse clima
de querer servir, espontânea e gratuitamente, remove os obstáculos que existem
entre nós e o Todo (Deus), porque diminui gradualmente o egoísmo unilateral e
exclusivista e aumenta a solidariedade unilateral e inclusivista, que uns
chamam altruísmo, outros amor, outros ainda benevolência universal. Com essas
práticas diárias, a muralha opaca que se ergue entre nós e Deus se torna cada
vez mais transparente, permitindo-nos a visão da grande Luz.
HUBERTO ROHDEN
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